Texto "Jogos de Armar" no Museu Segall, Angélica de Moraes,São Paulo - 2008
Que insetos, afinal, são esses da série de trabalhos que José de Quadros expõe no Museu Lasar Segall? Eles nos provocam fascínio e repulsa. Fascínio pelo modo como o artista desenha, com precisão de entomologista e olhar de menino, que vê o mundo em detalhes. Repulsa pela identificação da superfície em que estão pousados: jornais alemães que pregavam o nazismo e narravam atividades do Führer. Jornais com mais de meio século que sobreviveram, intactos, até serem transformados, pela arte, em antídoto ao veneno que carregam.
A justaposição insetos/nazismo proposta por José de Quadros desdobra sucessivos jogos de armar em encaixes emblemáticos. São reflexões que convergem para aquela agressão rasteira que, tolerada nos rodapés escuros da política e da vida cotidiana da sociedade, assoma o primeiro plano para manchá-lo de modo indelével. São obras que falam da persistência do que deveria ser aniquilado. Sobre o que permanece mau, pronto para fechar-se em armadilha.
“Sou fascinado pela natureza, especialmente quando vista em detalhes”, diz o artista. “Sempre quis fazer esses desenhos. Para mim, nenhum desses insetos é asqueroso. Eu mesmo tive um escorpião de estimação, o Cosimo, que trouxe da Croácia e posteriormente morreu com cupins envenenados – não sabia – que lhe dei. Esses desenhos, em outro papel, seriam algo bem diverso. Em cima desses jornais sinistros, tomam um rumo inequívoco. O horror não vem dos insetos mas do que eles apontam, como metáfora”.
Há pouco mais de um ano, o ateliê de José de Quadros em Kassel (Alemanha) foi invadido e incendiado. Até hoje os agressores, que agiram escondidos pela noite e pela impunidade, não foram presos nem identificados. Entre os escombros das dezenas de telas carbonizadas, o artista constatou que existem espécies de insetos muito resistentes e perigosas. Porque se escondem facilmente e não são combatidos nas frinchas onde se multiplicam e espreitam. Não por acaso, o artista instalou esses desenhos em ambiente escuro e sob luzes pontuais, como as de interrogatório ou de ambiente prisional. São mesas a percorrermos
e examinarmos minuciosamente o que exibem, como s estivéssemos em busca de evidências de um crime. São pistas cada vez mais sinistras, quanto mais entretecidas de palavras vindas diretamente de um tempo em eterna suspensão e suspeição.
Essa mostra, densa e grave como o que denuncia, cala fundo nos que têm consciência das tragédias causadas pela intolerância que ainda e sempre freqüentam o noticiário de todas as latitudes. Horror que emana da História e ainda nos visita, seja na favela ou no asfalto, para que não o esqueçamos. Tão resistente, aliás, quanto nossos sonhos de convivência pacífica e universal.
Desenhos são também jogos de desarmar. Porque acreditamos (ou precisamos acreditar) que a arte reinstala a dimensão do humano e recoloca a humanidade diante de sua face mais harmônica.
Angélica de Moraes, São Paulo, 2008.
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