O ATELIÊ DE SÃO PAULO
Estação Pinacoteca, São Paulo, 2007.
por Regina Teixeira de Barros
Há quase duas décadas José De Quadros divide seu tempo entre São Paulo e Kassel, na Alemanha. Os contrastes entre as duas cidades são flagrantes: São Paulo é uma metrópole agitada, que se expande de forma caótica e em ritmo estonteante; Kassel é uma cidadezinha pacata que se torna o centro das atenções do circuito das artes plásticas contemporâneas a cada cinco anos, por ocasião da "documenta".
A vivência entre essas duas realidades tão distintas é determinante na produção artística de Quadros, principalmente nas duas séries que vem desenvolvendo concomitantemente desde 2005. Tanto no conjunto de pinturas denominado "O ateliê de Kassel", quanto na série "O ateliê de São Paulo" - apresentada na Estação Pinacoteca, o pintor investiga seus espaços de trabalho.
O ateliê de São Paulo localiza-se na Vila Zelina, bairro de origem operária, que começo a crescer no final da década de 1940, com o assentamento de imigrantes lituanos refugiados da 2a Guerra Mundial. Ainda hoje o bairro conserva um aspecto de subúrbio com apenas alguns edifícios perturbando a regularidade dos telhados dos sobrados. No terraço do pavimento superior de uma dessas casas que José De Quadros instalou seu ateliê. De lá, em dias claros, avista ao longe a Serra da Cantareira.
Contudo, a linha do horizonte não instiga o artista. Quadros prefere concentrar-se no seu espaço de trabalho e, com um traço firme, registra os contornos dos móveis, da janela e da escada encostada no canto do ateliê. Curiosamente embora parta do desenho de observação, não deixa indícios dos objetos presumivelmente presentes em um estúdio, como pincéis, paletas, tubos de tinta e vidros com solventes. São as palavras na borda das obras que explicitam o assunto da série.
Quando o artista considera a paisagem exterior, seu olhar converge para aquilo que está imediatamente a seu redor, como a rua logo embaixo, os muros do outro lado da calçada, os fundos de quintal da vizinhança, os postes de luz, a fiação e os telhados. Projeta no espaço da tela arestas de um subúrbio comum, sem atrativos ou ícones arquitetônicos.
Esse tema, bem como os recortes e ângulos registrados por José De Quadros, remete à pintura paulista das décadas de 1930 e 1940, mais especificamente à produção do Grupo Santa Helena e da Família Artística Paulista. Ainda que mais conhecidos pelas paisagens dos arredores da cidade, os membros desses grupos também se dedicavam ao registro de cenas de interior e vistas da cidade a partir da janela do ateliê, localizado no antigo Palacete Santa Helena, na Praça da Sé. Da janela do Palacete, artistas como Francisco Rebolo (1902-1980), Mário Zanini (1907-1971) e Manoel Martins (1911-1979), pintaram as ruas e construções nas proximidades do ateliê, evitando a paisagem de horizontes mais largos.
Mas a obra de José De Quadros não pode ser interpretada somente sob este viés. Cada trabalho contém, no mínimo, três camadas distintas - e descontínuas - de referências, de procedimentos e de articulações. A preparação do fundo da tela, por exemplo, antecede o desenho (dos cantos do ateliê e da paisagem urbana), que por sua vez é recoberto por nova camada de pintura.
De acordo com o artista, o primeiro estrato de tinta aplicado à superfície é inspirado nos tons terra da estética barroca. Salvo raras exceções, a maioria das obras é composta de telas com pouca variação cromática, em geral tendendo para os ocres, marrons e beges.
Paralelamente, José De Quadros insere em todos os trabalhos (seja em um detalhe, seja como cor predominante) uma tinta azul arroxeada que ele próprio produz. Assim como o YKB (Yves Klein Blue), este azul opera como uma marca registrada do artista, identificando-o como o autor das obras, tal qual uma assinatura.
Outras referências da história da arte se fazem presentes na terceira camada de pintura, entre os quais Jean Michel Basquiat, Cy Twombly e neo-expressionistas alemães, como Baselitz e Richter. Nesse último estrato, por vezes a densa matéria pictórica recobre o desenho, deixando transparecer apenas resquícios das figuras, como se observa em "Antenas". Por outro lado, em outros trabalhos (como "Ateliê-paleta"), a interferência final sobre o desenho é muito tênue. Entre esses dois extremos, toda a série "O ateliê de São Paulo" recebe uma intervenção de pintura-pintura, desvinculada da figuração.
Da dissociação que existe entre as três camadas - a preparação da superfície, o desenho e a finalização da pintura - decorre a fragmentação da unidade das imagens, em favor da sobreposições de significados, que refletem a multiplicidade de heranças, interesses e realidades assimiladas por José De Quadros.
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